Após a pausa para falarmos de um lançamento nacional (aqui), voltamos com nossa série europeia “off Escócia”.
Nossa análise de hoje é sobre um whisky espanhol de malte, com 43,5% de teor alcoólico.
Produzido sem adição de corante caramelo; passou por filtragem à frio.
É um whisky envelhecido e engarrafado na Espanha, mas ao pé da letra, temos um blended de maltes escoceses e espanhóis finalizados em excelentes barris que antes contiveram vinho Jerez.
Sim.
Este whisky é produzido pela “Bodega Valdespino”, uma produtora de vinho Jerez, que por décadas vendeu seus barris, temperados com vinho Jerez, para destilarias escocesas envelhecerem seus whiskies, agregando características únicas que o Jerez proporciona e que nós entusiastas tanto admiramos!
Uma “Bodega”, é o equivalente a uma vinícola para nós brasileiros.
Há registros de que a Valdespino já produzia vinhos desde 1430 (!!!), e que as terras onde hoje colhem as uvas, lhes foram dadas em 1264, como presente do rei à um cavaleiro aliado, tronco da família Valdespino.
É uma das Bodegas mais antigas e mais respeitadas da Espanha. Pertence hoje ao grupo “José Esteves”.
Essa Bodega tão acostumada a fornecer seus barris temperados com Jerez, resolveu fazer o caminho inverso: Comprar whisky para seus barris, envelhecer ali mesmo em seus armazéns e engarrafar.
Para isso vem comprando whiskies escoceses e também whiskies espanhóis, misturando e colocando em seus melhores barris que antes contiveram vinho Jerez Palo Cortado e Oloroso, para maturação.
Mas o que é um vinho Jerez? E o que significa Palo Cortado e Oloroso???
É difícil esgotar o tema “vinho Jerez”, mas o básico se faz necessário para enriquecer a análise de hoje, então, dessa forma:
Vinho Jerez (assim chamado na Espanha); Sherry (em inglês); ou Xerez (em português), é um vinho licoroso, fortificado ou aguardentado (quando se adiciona destilado para interromper a fermentação), produzido na região do município de Jerez de La Fronteira (de onde herdou o nome), e alguns municípios próximos, também da Província de Cádis; Além do município de Lebrija (único pertencente à Província de Sevilha).
Para o vinho Jerez são usadas apenas três tipos de uvas, todas brancas: Palomino, Moscatel e Pedro Ximenez (estas duas de colheita tardia, para aguçar o dulçor, ou secas após a colheita para desidratar um pouco, concentrando o açúcar, técnica conhecida como appassimento).
Sua produção começa como qualquer vinho, prensagem das uvas (esmagamento), fermentação do mosto, por leveduras naturais ou adicionadas, em tanques de inox, transformando açúcar em álcool, liberando gás carbônico.
Em seguida é adicionado água ardente vínica, na proporção e na graduação alcoólica que se pretende com o produto final. A graduação alcoólica determinará o tipo de maturação do mosto.
Até 15%, 16%, de graduação alcoólica, as leveduras da fermentação (do gênero Saccharomyces – a mesma do pão e da cerveja), continuarão a trabalhar dentro do barril!
Dentro das barricas, geralmente de carvalho branco americano, com capacidade para 600 L (deixando um sexto de espaço sem preenchimento com vinho, ou seja, enche o barril até 500L), se formará uma camada sólida de levedura, também conhecida como “véu”, ou “flor”. Essa capa protege o vinho da oxidação, com as leveduras nascendo, morrendo, consumindo parte do seu álcool, interagindo, conferindo-lhe aromas e sabores.
Esses barris estão há anos, até décadas fazendo esse mesmo processo! A madeira esgotou. Servem apenas como receptáculos da interação entre o vinho, a aguardente e as leveduras.
Desse lindo processo advém um tipo de vinho Jerez proveniente do amadurecimento biológico. É um Jerez que decorre da ação das leveduras.
Existe o outro tipo. Em que se adiciona aguardente com teor alcoólico igual ou superior à 17% ABV.
Com esse teor alcoólico, as leveduras morrem e o amadurecimento do vinho dentro das barricas ocorre sem a “flor” para protegê-lo. O vinho vai lentamente oxidando.
Daí, temos o amadurecimento oxidativo ou físico/químico.
Outro perfil de aromas e sabores.
E coincidentemente o tipo de Jerez mais comum “temperando” barris para a indústria do whisky mundial: o Oloroso!
E principalmente, barris de carvalho europeu!
Mas foi dito ali em cima que o vinho Jerez matura em barris de carvalho americano! Como o barril de carvalho europeu é mais usado pela indústria do whisky mundial quando busca um barril “temperado” com vinho Jerez???
A explicação é simples!
Para se fabricar o Jerez, as Bodegas preferem o carvalho americano.
Para usar barris ex Jerez, a indústria do whisky prefere o carvalho europeu!
Eu sei, complica um pouco! Mas os detalhes fazem toda a diferença!
Os barris ex Jerez que, por exemplo, vão para a Escócia maturar ou finalizar whiskies, não são os barris em que se produzem o vinho Jerez.
São barris “temperados” com o Jerez mais comum e mais fácil de fazer: o oxidativo Oloroso!
Deixam o barril por meses ou poucos anos, agregando à madeira o caráter do vinho Jerez.
Historicamente, a Espanha vende vinho Jerez para a Grã-Bretanha. Antigamente o vinho viajava de navio em barris para outros países. Algum produtor de whisky aproveitou um desses barris e encheu com seu whisky. Gostou do resultado!
Esse barril de transporte era produzido com boa qualidade para aguentar a viagem e os espanhóis usavam a madeira que eles tinham disponíveis: Carvalho Espanhol!
Assim surgiu a taradice, digo, profundo interesse da indústria do whisky escocês pelo barril de carvalho espanhol ex Jerez!
Indústria esta que depois, mais na frente, descobriu a mesma qualidade e diversidade em outros tipos de Carvalho.
Mas por que as Bodegas de Jerez preferem o Carvalho Branco Americano para envelhecer seus vinhos? Inclusive no “sistema de criaderas y soleras” ?
Porque possui maior resistência, durabilidade e grande capacidade higroscópica (!!!)
Ou seja, uma capacidade maior de equilibrar a umidade ao seu redor.
Essa explicação foi necessária porque nosso whisky aponta no rótulo ser “envelhecido em velhos barris de Valdespino Palo Cortado e Oloroso”.
Pois bem, Oloroso está muito bem explicado ali em cima.
Com relação ao Jerez Palo Cortado, a história é mais complexa! Sua maturação começa sob a “flor” de fungos. Em determinado momento (cerca de seis meses), se acrescenta um pouco mais de aguardente vínica; a maturação biológica é interrompida, as leveduras morrem e a maturação passa a ser oxidativa!
Complexo!
Os dois tipos de maturação do Jerez num único vinho.
O fato da Bodega não dar muitas explicações coloca o crítico no campo da especulação!
É o que provavelmente aconteceu aqui. Barris temperados de Jerez Palo Cortado e Jerez Oloroso. Misturaram o lote, “casaram” por alguns meses os whiskies em receptáculos de inox ou madeira e engarrafaram.
E aqui destilamos (hahaha), um tema polêmico:
Por uma questão de lógica, o sistema de criaderas e soleras, ao pé da letra, como cópia da produção do vinho Jerez, não funciona para destilado!
Mas por quê?
Não é objetivo no envelhecimento de whisky a oxidação. O objetivo é a interação madeira x destilado. Claro que a oxidação vai ocorrer! Mas de forma natural e gradual. É uma consequência, não objetivo.
Com o uso, os barris das “criaderas e soleras”, na parte em que sempre se extrai o líquido e logo se repõe, se esgota! Os barris viram meros receptáculos.
Por isso quando o brilhante David Stewart criou o icônico “Glenfiddich 15 anos Solera”(em 2023 sai a análise!), lá em 1998, se inspirou no sistema usado para o vinho Jerez, mas não fez igual. Não fez!
Usou whiskies envelhecidos em três tipos diferentes de barris que são casados num grande barril.
Na verdade um grande tonel!
Este tonel, para todo engarrafamento de Glenfiddich 15 anos, é esvaziado no máximo até metade. Mantendo aqui a “ideia” da Solera (inegavelmente está próximo ao solo).
A complexidade do Glenfiddich 15 anos, vem da interação da madeira de três tipos de barris e da manutenção dos whiskies, já prontos e complexos, dentro de um grande tonel inerte (que nunca será esvaziado totalmente), misturando, oxidando lentamente whiskies com estágios diferentes de amadurecimento.
Interação, blendagem e oxidação.
Coisa de gênio.
Claro, tudo deve-se levar em conta o objetivo a ser alcançado. Aqui varia o método.
Nada impede que a Bodega Valdespino siga de alguma forma o modelo. Até porque em seu site cita algo parecido. Pode-se fazer a maturação usando barris previamente temperados e “casar” os whiskies no sistema de “criaderas e soleras” especialmente preparado para receber o destilado.
Eles podem ter reservado barris, num sistema de “criaderas e soleras” apenas para seu whisky! Com primeiro, segundo, terceiro, até quarto uso, depois trocando todos os barris novamente…
Ou aproveitando uma Solera pouco usada para vinho, tendo a madeira ainda ativa.
Não há como confirmarmos. A Bodega não respondeu aos nossos e-mails.
Especulamos.
Sigamos.
Sobre o Valdespino na taça…
Lágrimas bem estreitas escorrem devagar. Whisky gruda nas laterais. Alguns respingos nem chegam a cair.
Aroma bem rico. Vínico, frutado, com leve café.
O Jerez realmente domina. Ameixa preta, ameixa passa, frutas cristalizadas e secas, fruta madura, bala de frutas.
Na boca possui um adocicado que lembra mel. Pimenta vermelha. Fruta madura, principalmente morangos e cerejas. Citricidade leve.
A consistência é média para rala. Não achei tão oleoso no paladar quanto visualmente.
A finalização é de média duração. Novamente as frutas vermelhas e a pimenta; juntamente com um frescor de menta e uma sensação levemente enfumaçada que lembra tabaco e pode indicar um percentual baixo de cevada turfada ou até mesmo indício que um barril ou barris passaram por queima interna. Novamente, não tem como ter certeza.
Com a taça esvaziada, cheiro de natal! Panetone. Frutas cristalizadas. Bolo de frutas.
Apesar do mistério e da falta de informação, é considerado dentro da Espanha, como um dos melhores whiskies espanhóis já lançados!
A Espanha ainda está tímida na fabricação de whiskies. Principalmente whiskies de malte. Mas encontrar um whisky com essa qualidade nos mostra que estão traçando um bom caminho. Mesmo que essa iniciativa venha de uma vinícola. Também não é um fato inédito pois produtores de vinho da França já fizeram o mesmo.
Sobre o whisky em si, a complexidade agradou mas poderia ter sido engarrafado com ABV um pouco superior e sem filtragem à frio, mas é nossa opinião. O que parece claro é que o produtor desejou suavidade em seu produto. E ele conseguiu suavidade com boa dose de complexidade.
Salud!!!
4 comentários
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Tenho aprendido muito lendo suas degustações! Obrigado pelo esforço!
Autor
Obrigado, amigo!
O objetivo está sendo alcançado então!
Saúde!!!
Resta saber , onde comprar esta preciosidade estando aqui no Brasil ?!
Autor
É amigo…
Infelizmente eu nunca vi {a venda aqui no Brasil.
Comprei meu exemplar numa loja de bebidas em Barcelona/Espanha, ano passado.
É uma produção muito pequena.
Abraço.